Hoje a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), com base no parecer do relator Bonifácio de Andrada (PSDB-GO), aprovou a Proposta de Emenda Constitucional nº 99/2011 (apelidada de PEC do Fundamentalismo religioso), do deputado e presidente da bancada evangélica, João Campos (PSDB-GO).
A PEC do Fundamentalismo religioso propõe estender às as entidades religiosas de âmbito nacional entre aquelas que podem propor ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal.
A CCJ tem por atribuição, dentre outras, analisar os aspectos de constitucionalidade, legalidade, juridicidade, regimentalidade e de técnica legislativa, e, juntamente com as Comissões técnicas, para pronunciar-se sobre o mérito do projeto, bem como analisar a admissibilidade de proposta de emenda à Constituição. Se o parecer aprovado por essa comissão for pelo arquivamento, o projeto será extinto sem seguir em frente, o que a torna a comissão mais importante da Câmara.
Infelizmente, em pese tão importante tarefa, a CCJ da Câmara, no ano de 2011, dos 3.268 projetos de lei apresentados, foram aprovados 100%, segundo informações do Consultor Jurídico. A CCJ não tem feito de forma criteriosa seu trabalho, deixando passar projetos de lei que violam a Constituição da República e pondo em risco a normalidade democrática do país.
Abaixo, um texto nosso a respeito escrito em 30 novembro de 2011, pouco após a propositura da PEC:
A inconstitucionalidade da PEC do fundamentalismo religioso
Eu já conhecia Proposta de Emenda Constitucional nº 99/2011 (PEC 99/11) assim que foi apresentada, cheguei a debatê-la no Facebook, mas não tive tempo para escrever algo mais concreto.
Agora que o projeto está na pauta de discussão pública e depois de ler o texto “Nova agressão fundamentalista ao Estado Laico e às minorias:PEC 99/11“, uma excelente análise sociopolítica feita pela Karla Joyce, e cuja leitura prévia recomendo, senti necessidade de fazer uma análise jurídica (com algumas nuances políticas, que não podem ser ignoradas), mas sem juridiquês.
1. As investidas fundamentalistas da Frente Parlamentar Evangélica, apoiada pelos parlamentares conservadores (incluindo católicos fundamentalistas), tem apunhalado a democracia brasileira com projetos que ofendem não só a laicidade do Estado, mas a noção própria de liberdade, igualdade, fraternidade e dignidade humana do regime democrático, como mostram os exemplos elencados pela Karla Joyce no texto que mencionei e muitas outras sandices que você pode conhecer no Fiscais do Fiofó S/A;
Como bem notou a Karla Joyce em seu texto, a PEC 99/11 é mais uma demonstração do desprezo do deputado João Campos e cia. pela decisão do STF sobre a união estável homoafetiva, em 05 de maio de 2011. Pura birra que jádenunciei aqui mesmo poucos dias depois da decisão do STF; uma birra que, inclusive, ofende a própria Constituição, pois quer a todo custo reverter a decisão do STF, enquanto quem, com bons argumentos, mesmo achando errada a decisão, reconhece que ela deve ser obedecida.
2. A PEC dispõe sobre a “capacidade postulatória das Associações Religiosas” para propor ação de inconstitucionalidade (ADIn) e ação declaratória de constitucionalidade (ADECON) de leis ou atos normativos.
Já se vê o brilhantismo jurídico do deputado (ou de sua assessoria jurídica, vá lá): a capacidade postulatória, ou seja, capacidade para ajuizar uma ação e promover a defesa de interesse seu ou de outra(s) pessoa(s) em juízo só pertence a quem é advogado (há raríssimas exceções, que também aqui não se aplicam). O correto aí seria “legitimidade ativa”, isto é, quando a lei autoriza que a pessoa/entidade possa, por meio de um advogado, postular (iniciar uma ação, por exemplo) em juízo.
3. Deixando de lado o cinismo na parte da justificativa da PEC que fala em laicidade (cinismo desmascarado pela prática cotidiana desse grupo), é bem verdade que o Direito brasileiro reconhece as associações religiosas como entidades sui generis, de caráter especial, como está definido no art. 44 do Código Civil, reconhecendo o caráter de associação e, ainda, determinando que “são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.”; esse trecho entre aspas foi conquista dolobby evangélico em 2003.
Até se pode passar a impressão de que, sendo sui generis, as associações religiosas tudo podem. Não, não podem. Elas devem respeitar os direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal. Tanto assim é que não poderia uma associação ter como finalidade “exterminar a raça negra por ser ela ser uma ‘descendente do ancestral amaldiçoado por Noé’” (talvez o deputado Marco Feliciano fosse o presidente e decano dessa entidade, a julgar pelo racismo declarado).
4. Na PEC, as associações religiosas seriam os legitimados especiais, isto é, só teriam legitimidade para propor ações quando houvesse o que gente chama de “pertinência temática”, ou seja, quando houvesse uma correlação entre as finalidades da associação e o que está disciplinado na norma que se questiona a constitucionalidade.
No caso das confederações sindicais e entidades de classe, há exigências (o texto da Karla Joyce fala deles) que se somam à pertinência temática, mas, como eu já disse, no caso das associações religiosas o Estado está proibido de fazer qualquer exigência além da pertinência temática. Aqui são dois os problemas que vejo, por ora:
a) Basta definir em seu estatuto que a associação tem caráter nacional, ainda que apenas futuramente ela possa se estabelecer fisicamente ou possuir membros em todo o território nacional. Nada poderia o Estado fazer para vetar esse dispositivo do estatuto, o que abre margem para a associações do “eu comigo mesmo” (ideia do amigo Alexandre Bahia), como a Associação Eduardo Banks;
b) Se a associação definir como finalidade “Defender a vida, família, moral e os bons costumes” – e o Estado não pode se negar a registrá-la nesses termos! -, ela poderá impugnar quase tudo, afinal a cosmovisão religiosa inclui quase todos os aspectos da vida. Irão intervir em projetos que ofendam a moral religiosa. Imagino, por exemplo, ADIn contra uma lei que aprove o casamento civil homoafetivo – apesar de que, juridicamente, nada impeça tal casamento. Já imaginou a confusão monstruosa? Mesmo admitindo que o STF restringiria esse campo, os riscos são gravíssimos;
5. Se se tivesse de aprovar a PEC, ela deveria ser estendida a toda e qualquer associação com abrangência nacional, legitimando associações como a Liga Humanista Secular do Brasil, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis eTransexuais – ABGLT e outras. Na prática, é o mais democrático. Não há meio-termo.
Se não se deseja que o STF seja abarrotado dessas ações (com todas as associações de caráter nacional como legitimadas), a solução é deixar como está: associações, quaisquer que sejam, podem ser amicus curiae (“amiga da corte”), como foi a CNBB no julgamento da união estável homoafetiva, e participar das audiências públicas que debatam os projetos que lhes interessem.
6. Permitir somente às associações religiosas tal legitimidade é um privilégio inadmissível numa democracia, pois fere o princípio da igualdade e, ainda, o da laicidade, pois permite uma intromissão das religiões nas leis, querendo adequá-las à moral religiosa.
Assinem a petição da Liga Humanista Secular do Brasil contra essa PEC:
http://lihs.org.br/pec99
Tenho a tranquila convicção de que esses projetos, em sua esmagadora maioria, são gritantemente inconstitucionais, mas não tenho essa tranquilidade com relação ao Congresso Nacional, que vacila no vai-e-vem do conservadorismo e fundamentalismo religiosos, o que nos obriga, cidadãos e cidadãs brasileiros, a fazermos vigilância constante contra esses ataques de grupos desejosos de uma Idade das Trevas Teocráticas no Brasil.
por Thiago Gomes Viana, presidente do Conselho Jurídico da LiHS
Fonte do texto de 2011: Fruto Proibido