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POLUIÇÃO SONORA:
Ana Maria Moreira Marchesan,
Promotora de Justiça, Coordenadora das Promotorias de Defesa Comunitária - Área
do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural
1. LEGISLAÇÃO:
A Legislação acerca do tema é fragmentada e dissonante, dificultando sobremodo
sua interpretação e conseqüente aplicação pelo operador do direito.
No plano constitucional, a poluição sonora, por caracterizar fenômeno
contribuinte à degradação da qualidade de vida, portanto com nítidos reflexos
no meio ambiente , pode ser combatida pelo Ministério Público com fulcro nos
arts. 23, inc. VI; 170, incs. III e VI, e 225.
A legitimidade ministerial (tema que adiante trataremos com maior
profundidade) para o enfrentamento da matéria advém do art. 127 da Constituição
Federal que arrola, dentre as atribuições institucionais a defesa dos
interesses sociais e individuais indisponíveis, o que também é reforçado pelo
disposto no art. 25, inc. IV, alínea "a", da Lei Orgânica Nacional do
Ministério Público e 107 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.
No plano federal, as normas de regência são as seguintes:
- Lei da Política Nacional do Meio Ambiente ;
- Lei da Ação Civil Pública , com as alterações introduzidas pelo Código de
Defesa do Consumidor ;
- Lei que disciplina as diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas
áreas críticas de poluição .
Ainda na órbita federal, são de enorme importância as resoluções do CONAMA
(Conselho Nacional do Meio Ambiente), órgão incumbido, pela Lei que dispõe
sobre a Política Nacional do Meio Ambiente , em seu art. 8º, incs. VI e VII, de
estabelecer normas e padrões nacionais de controle da poluição por veículos
automotores, aeronave e embarcações e de estabelecer normas, critérios e
padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com
vistas ao uso racional dos recursos ambientais .
Dentre essas resoluções, merecem destaque, no que pertine à poluição sonora,
as seguintes:
- 001, de 08.03.90, que estabelece critérios e padrões para a emissão de ruídos
em decorrência de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais,
recreativas e de propaganda política;
- 002, de 08.03.90, que institui o Programa Nacional de Educação e Controle da
Poluição Sonora- SILÊNCIO;
- 001, de 11.02.93, que estabelece limites máximos de ruído para veículos
automotores nacionais e importados, exceto motocicletas, motonetas,
ciclomotores, bicicletas com motor auxiliar e veículos assemelhados, dando
outras providências;
- 20, de 07.12.94, que estabelece o selo-ruído como indicação do nível de
potência sonora em aparelhos eletrodomésticos e dá outras providências;
- 17, de 13.12.95, que dispõe sobre o controle de emissão de ruídos em veículos
automotores que sofreram modificações;
- 20, de 24.10.96, que dispõe sobre controle da emissão de poluentes
atmosféricos e ruídos emitidos por veículos automotores;
- 242, de 30.06.98, que estabelece limites máximos de ruídos em veículos com
características especiais para uso fora das estradas;
- 252, de 01.02.99, que estabelece critérios específicos para fiscalização das
emissões sonoras dos veículos que circulam por vias públicas e
- 256, de 30.06.99, que dispõe sobre prazos e procedimentos pertinentes às
inspeções de segurança veicular, inclusive nível de ruídos.
De extrema relevância, ainda, as seguintes normas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
NORMAS TÉCNICAS (ABNT) :
- NBR nº 10.151, que fixa as condições exigíveis para avaliação da
aceitabilidade do ruído em comunidades. Especifica um método para a medição de
ruído, a aplicação de correções nos níveis medidos (de acordo com a duração,
característica espectral e fator de pico) e uma comparação dos níveis
corrigidos, com um critério que leva em conta os vários fatores ambientais.
Para a definição de ruído noturno, v.g., essa Norma recomenda o horário das das
20h às 6h.. A Norma também estabelece critérios básicos para uso residencial
conforme o tipo de zona: zona de hospitais, residencial urbana, centro da
cidade e área predominantemente industrial, em ordem decrescente de rigorismo.
- NBR nº 10.152, dispõe sobre níveis de ruído para conforto acústico,
complementando a NBR nº 10.151.
No Estado do Rio Grande do Sul, temos as seguintes normas dignas de destaque:
- Decreto Estadual nº 20.637, de 31.10.70, cujo art. 34, inc. II, reza que os
estabelecimentos de diversão noturna deverão oferecer condições capazes de
evitar a propagação de ruídos para o exterior;
- Decreto Estadual nº 23.430, de 24.10.74, que regulamenta o Código Sanitário
do Estado (Lei nº 6.503, de 22.12.72), define, em seus arts. 125 a 132, sons
incômodos e ruídos.
- Lei nº 7.488, de 14.01.81, que dispõe sobre a proteção ao meio ambiente e o
controle da poluição .
Entretanto, o Regulamento ao Código Sanitário do Estado não vem sendo aplicado
como parâmetro na medição de ruídos e na avaliação de situações de
incomodidade, porquanto de difícil, senão impossível, utilização técnica. A
referida norma define dois níveis de ruído: diurno, com padrão máximo de 60
decibéis , e noturno, assim considerado o horário entre 22h e 5h, com padrão
máximo de 30 decibéis. A dificuldade está no fato de o Decreto determinar que a
medição do ruído máximo para o período diurno seja feita na curva "B" do
medidor de intensidade de som (decibelímetro). Essa curva "B" está em desuso
para fins de ruído em meio aberto, tanto assim que os aparelhos utilizados para
medições dessa natureza, de regra, não mais estão capacitados a efetuar
medições na curva "B" .
A par disso, é preciso gizar que o nível máximo de ruído tolerado para o
período noturno é deveras baixo: 30 decibéis .
Esse somatório de fatores fez com que o próprio órgão ambiental do Estado - a
FEPAM - quando realizava avaliações de ruídos, lançasse mão da Resolução nº
1/90 do CONAMA, em combinação com as NBRs 10151 e 10152, para tais tarefas,
ante os insuperáveis problemas de aplicação do Decreto nº 23.430/74.
O Projeto de Código Estadual de Meio Ambiente, que está na iminência de ser
votado pelo Parlamento Gaúcho, no art. 232, remete aos padrões e critérios
estabelecidos em lei municipal, se houver; sucessivamente, aos estabelecidos
pelo órgão ambiental estadual e, na inexistência desses, aos apregoados por
normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).
O Promotor de Justiça, antes de ajuizar ação civil pública envolvendo questão
atinente à poluição sonora, deverá verificar, em primeiro lugar, se o
Município onde está sediada a atividade poluidora possui normas específicas
(que poderão ser mais rigorosas que as estaduais e federais) . Deverá tomar
conhecimento da Lei Orgânica do Município, do Plano Diretor (se houver), do
Código de Posturas Municipais e de outras leis que, porventura, regulamentem o
parcelamento do solo urbano e disponham sobre a proteção do meio ambiente.
A título exemplificativo, no Município de Porto Alegre, o Código de Posturas
dispõe sobre o assunto nos arts. 76 a 83. A Lei Complementar nº 65, de
22.12.81, disciplina a prevenção e o controle da poluição, sendo regulamentada
pelo Decreto nº 8.185, de 07.03.83, em cujo art. 3º, inc. X, define som
incômodo como "toda e qualquer emissão de som medido dentro dos limites reais
da propriedade por parte supostamente incomodada que a) ultrapasse em mais de
5dB-A o valor do ruído de fundo, seguindo analiticamente, a seguinte
equação...".
2. POLUIÇÃO SONORA - CONCEITUAÇÃO:
Etimologicamente, poluir - do latim polluere - "é o mesmo que estragar, sujar,
corromper, profanar, macular, contaminar" .
A Lei nº 6.938/81, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, em seu
art. 3º, inc. III, define a poluição como a degradação da qualidade ambiental
resultante de atividades que direta ou indiretamente a) prejudiquem a saúde; b)
criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem
desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do
meio ambiente e/ou e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões
ambientais estabelecidos.
A mesma lei, no inc. IV do art. 3º, define poluidor como a pessoa física ou
jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente,
por atividade causadora de degradação ambiental.
A poluição sonora, especificamente, é aquela degradação da qualidade
ambiental, com as conseqüências especificadas nas alíneas "a" a "e" do do inc.
III do art. 3º da L. 6.938/81, fruto de som puro ou da conjugação de sons.
Tem-se que as atividades sonoras serão havidas como poluidoras por presunção
legal, na medida em que se situarem fora dos padrões admitidos em lei, nas
resoluções do CONAMA e nas normas técnicas recomendadas.
Destaca-se, portanto, que a nocividade do ruído decorre de presunção
normativa, de acordo com a Resolução CONAMA 001/90. Segundo essa Norma, "são
prejudiciais à saúde e ao sossego público, para os fins do item anterior, os
ruídos com níveis superiores aos considerados aceitáveis pela norma NBR 10.152
- Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas visando o conforto da comunidade, da
Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT".
Se o Estado e o Município contiverem legislação específica, mais restritiva
que a prevista pelo CONAMA, essas deverão prevalecer para fins de
caracterização da atividade como poluidora, pois, conforme apregoa PAULO
AFFONSO LEME MACHADO,
"Em razão do sistema constitucional de repartição de competências, já estudado
genericamente, assinalamos que as diretrizes da resolução 001/90 CONAMA,
incorporando os valores da NBR 10.152, são normas gerais, conforme o art. 24,
parág. 1º, da CF. Assim, os estados e municípios podem suplementar esses
valores, para exigir mais, isto é, fixar índices menores de decibéis no sentido
de aumentar a proteção acústica. Contudo, estados e municípios não poderão
diminuir seus índices de conforto acústico apontados pela norma federal" .
3. POLUIÇÃO SONORA e DEMAIS FORMAS DE POLUIÇÃO - COMPARAÇÃO:
A poluição sonora difere bastante das demais formas de poluição.
O ruído, que pode ser definido como "qualquer sensação sonora indesejável" ou,
como dizem alguns, "um som indesejável que invade nosso ambiente, ameaçando
nossa saúde, produtividade, conforto e bem-estar" , é produzido em toda parte,
não sendo fácil controlá-lo na fonte, como acontece com a poluição atmosférica
ou hídrica.
Conquanto o ruído não produza efeitos cumulativos no organismo, do mesmo modo
que outras modalidades de poluição, diferencia-se por não deixar resíduo no
ambiente, tão logo interrompido.
Ademais, o ruído é apenas perceptível nas proximidades da fonte, não tendo
conseqüências genéricas, como acontece com certas formas de poluição do ar e da
água, a exemplo da poluição radioativa. Porém, o ruído repercute na saúde
humana afetando a audição, provocando dor e podendo mesmo danificar de forma
irreversível o mecanismo fisiológico da audição. O ruído provoca perturbações
fisiológicas diversas, tais como flutuações das pulsações cardíacas, da tensão
arterial e da vasodilatação dos vasos periféricos e ainda contração dos
músculos das vísceras e modificações do funcionamento das glândulas endócrinas.
O sono fica profundamente afetado pelo ruído, tendo como reflexo uma menor
produtividade do indivíduo em suas atividades laborais, dificuldades em
desempenhar tarefas que exijam concentração e interferências nocivas na
comunicação oral .
4. RESPONSABILIDADE PELA POLUIÇÃO SONORA:
Partindo-se da definição contida no art. 3º, inc. IV, da Lei 6.938/81,
considera-se poluidor "a pessoa física ou jurídica, de direito público ou
privado, responsável direta ou indiretamente por atividade causadora de
degradação ambiental".
Reconhece o citado dispositivo a responsabilidade solidária dos diversos
poluidores. Assim, tanto a pessoa jurídica que desenvolve atividade geradora de
ruído (ex. indústria, bar, discoteca, danceteria, oficina, escritório, empresas
de transportes, construtora, etc.), como os seus representantes (pessoas
físicas) devem ser envolvidos nas amarras da responsabilidade civil pelo dano
ambiental.
O Poder Público também poderá ser responsabilizado, seja na condição de
poluidor direto, como na de poluidor indireto. Será poluidor direto quando
promover, realizar ou executar atividade causadora de ruído, em desacordo com
os padrões normativos. Será considerado poluidor indireto quando se omitir no
dever fiscalizatório, em virtude do não exercício de medidas de controle e de
zoneamento. Consoante apregoa ARMANDO H. DIAS CABRAL: "A propriedade privada
não se tornou algo intocável; desde que seu uso se desencontre de sua função
social, vale dizer, do interesse público concernente à segurança, à higiene, à
ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, à tranqüilidade
pública, ao respeito às demais propriedades, à estética urbana e aos direitos
individuais ou coletivos, seja ou não por matéria ou energia poluente, o Poder
público tem o dever de limitá-la administrativamente. Não o fazendo, a
Administração se torna civilmente responsável por eventuais danos sofridos por
terceiros em virtude de su
a ação (permitindo o exercício da atividade poluente, em desacordo com a
legislação vigorante) ou de sua omissão (negligenciando o policiamento dessas
atividades poluentes)" .
5. POLUIÇÃO SONORA E CULTOS RELIGIOSOS:
Não há dúvidas de que a Constituição Federal protege a liberdade de crença e
o exercício dos cultos religiosos , na forma da lei. Mas não é em função
dessa liberdade de culto que se vai permitir a propagação de ruído capaz de
perturbar os moradores do entorno das casas religiosas.
O mestre PAULO AFFONSO LEME MACHADO, aliás, após enfatizar a garantia
constitucional à liberdade religiosa, adverte:
"nem dentro dos templos, nem fora dos mesmos, podem os praticantes de um
determinado credo prejudicar o direito ao sossego e à saúde dos que forem
vizinhos, ou estiverem nas proximidades das práticas litúrgicas" .
No mesmo sentido há decisão prolatada pelo nosso e. Tribunal de Justiça, nos
autos do Mandado de Segurança nº 593156896, "in literis":
" Ação Civil Pública. Deferimento de liminar para vedar o uso, durante culto
religioso, de instrumento de ampliação sonora, causadora de perturbação e
poluição ao ambiente. Inexistência de ofensa ao direito de culto. O Estado,
como tem obrigação de tutelar pela liberdade de culto, deve também proteger o
meio ambiente da poluição sonora causada por instrumentos amplificadores de
sons. Denegação do writ".
No mesmo diapasão vem decidindo o e. Tribunal de Justiça de São Paulo,
reconhecendo inclusive a legalidade do exercício do poder de polícia para
coibir a propagação abusiva do ruído, conforme veremos:
"Ato administrativo - Templo religioso - Igreja Universal do Reino de Deus -
Fechamento - Cultos ruidosos, disseminados por aparelhagem de som. Prejuízo ao
sossego de vizinhança - Exercício do Poder de Polícia que não afronta a
liberdade de culto - Inexistência de afronta ao art. 5º VI da Constituição da
República/88 - Município que é competente para proibir a prática religiosa
quando ela se torna abusiva e anti-social" .
A Promotora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, TÂNIA SALLES, em excelente
trabalho acerca do "Poder de Polícia" , explora o tema da liberdade de culto
frente à poluição sonora afirmando corretamente que as "Igrejas Eletrônicas",
que utilizam poderosos aparelhos de amplificação sonora, ao provocarem ruídos
geradores de incômodos aos moradores do entorno, estão submetidas, neste
aspecto, às normas que regem o controle ambiental. De se acrescentar, por
pertinente, que a mesma Constituição que consagra a liberdade de culto garante
o direito de todos a fruírem de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
No tocante à instalação de alto falantes que emitem elevados sons no exterior
dos prédios das Igrejas, além da problema atinente à poluição sonora, é
possível vislumbrar nessa conduta a violação ao princípio da liberdade de
crença, pois tal prática viola o direito de eventual vizinho sem crença ou dos
que professam outros cultos religiosos, na medida em que, do interior de suas
residências, estariam jungidos a ouvirem, diuturnamente, as pregações lançadas
ao ar pelos aparelhos instalados na face externa das Igrejas.
6. A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM MATÉRIA DE POLUIÇÃO SONORA:
A Lei 6.938/81 dava ao Ministério Público legitimidade para promover ação de
responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente . Com o advento da
Lei nº 7.347/85, passou o Ministério Público a ter autorização para promover a
ação principal e a cautelar em defesa do meio ambiente.
O advento do Código de Defesa do Consumidor acrescentou à Lei da Ação Civil
Pública o art. 21, que determina a aplicação ao microssistema dessa lei dos
dispositivos inseridos no Título III da norma consumerista.
O parágrafo único do art. 81 do Título III do CDC define interesses ou
direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Já, o art. 82, inc. I, do
mesmo diploma, assegura ao Ministério Público legitimidade para propor as
ações necessárias à tutela desses interesses transindividuais.
Os problemas gerados com a poluição sonora dificilmente não se revestirão de
cunho difuso. Segundo o art. 81, parág. único, inc. I, do CDC, consideram-se
"interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código,
os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas
indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato".
É notório que a poluição sonora, salvo raras exceções, atinge indivíduos
indeterminados que, em certas condições de espaço e tempo têm em comum um fato:
sofrerem as conseqüências nocivas do ruído gerado por determinada atividade. A
propósito, o Superior Tribunal de Justiça, em magnífico voto da lavra do
ilustre Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, já se pronunciou acerca do tema,
"in literis":
" Portanto, há um conjunto de normas que garantem legitimidade ad causam para
o Ministério Público agir em juízo na defesa do meio ambiente, e a decisão
que, admitindo a existência de uma atividade poluidora sonora, lhe recusa
legitimidade para essa atuação, contende com os dispositivos legais acima
referidos, também indicados nas razões de recurso.
Trata-se de interesse difuso, assim como definido no art. 81, inc. I, da Lei
8.078/90 (interesse transindividual, de natureza indivisível, de que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato), onde
estão presentes as características acentuadas por Kazuo Watanabe:
indeterminação dos titulares, inexistência entre eles de relação jurídica-base,
no aspecto subjetivo, e indivisibilidade do bem jurídico, no aspecto objetivo
(Cód. Bras. de Defesa do Consumidor, 4ª ed., p. 501/502). Por isso, não
interessa para o deslinde da questão a quantidade de pessoas que tenham
reclamado do dano (pode ser que nenhuma manifeste sua contrariedade, por um
motivo ou outro), pois o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é
bem de uso comum que se impõe ao Estado defender e preservar (art. 225 da CR).
No âmbito do Judiciário, a lei outorgou também ao Ministério Público, entre
outras entidades e instituições, o exercício desse dever, e a Constituição
consagrou como uma de suas funções promo
ver a ação civil pública para a proteção do meio ambiente (art. 129, III).
Entrementes, a fim de evitar maiores celeumas judiciais tendentes ao
afastamento da legitimidade ativa ministerial, sugere-se ao promotores de
justiça que, antes de instaurarem inquérito civil envolvendo matéria afeta à
poluição sonora obtenham abaixo-assinado contendo significativo número de
assinaturas, nomes e endereços dos interessados. O abaixo-assinado, além de
caracterizar a coletividade de indivíduos interessados na atuação ministerial,
será útil instrumento para a instrução do procedimento inquisitorial,
facilitando a localização de testemunhas.
No intuito de afastar da órbita da intervenção ministerial o enfrentamento de
questões que mais se afinam aos direitos de vizinhança, o Conselho Superior do
Ministério Público paulista editou a Súmula 14, cujo teor nos permitimos
transcrever:
" Em caso de poluição sonora praticada em detrimento de número indeterminado
de moradores de uma região da cidade, mais do que meros interesses individuais,
há, no caso, interesses difusos a zelar, em virtude da indeterminação de
titulares e da indivisibilidade do bem jurídico protegido.
Fundamento: Se os ruídos urbanos importam lesões que não são restritas ao
direito de vizinhança, mas que atingem a qualidade de vida dos moradores da
região ou de toda a coletividade, o Ministério Público estará legitimado à ação
civil pública".
O enunciado da Súmula nos parece correto. Entrementes, ousamos divergir de sua
fundamentação, porquanto entendemos não ser necessário à atuação ministerial
que os ruídos importem em lesões aos moradores de uma região da cidade, pelo
menos. É possível, a nosso juízo, que o Ministério Público atue em prol dos
moradores de uma rua, de moradores de prédios vizinhos à atividade causadora do
distúrbio, pois a capacidade de um fato gerador de ruído estender-se e
reduzir-se é extremamente mutante e dificilmente perde a característica difusa,
legitimando a atuação ministerial .
7. ROTEIRO PARA CONDUÇÃO DO INQUÉRITO CIVIL EM MATÉRIA DE POLUIÇÃO AMBIENTAL:
Ao se defrontar com representação, notícia, reclamação, pedido de providências
que revelem situação de poluição sonora, o Promotor de Justiça deverá ter a
cautela de verificar se há informações mínimas capazes de identificar o
responsável pela fonte de ruído, sua reiteração (não deve ensejar atuação
ministerial um fato isolado, episódico), nomes e endereços das sedizentes
vítimas.
Mais uma vez, repete-se, é de muita valia que a documentação venha instruída
com um abaixo-assinado com significativo número de assinaturas, os nomes e os
endereços dos queixosos.
Instaurado o inquérito civil, deverá o Promotor de Justiça oficiar ao órgão
ambiental municipal, se houver, ou ao estadual, para que vistorie o local onde
se acha instalada a atividade apontada como poluidora e efetue medição de
ruídos de acordo com as normas e padrões técnicos cabíveis. Outra
possibilidade, no tocante à avaliação técnica dos índices de pressão sonora, é
a de o Promotor de Justiça exigir que o empreendor/investigado contrate medição
a ser feita por profissional habilitado junto ao CREA, o qual deverá apresentar
laudo acompanhado da competente ART (Anotação de Responsabilidade Técnica).
Nesse caso, conveniente que a medição seja acompanhada de integrante da PATRAM
ou outro fiscal da confiança do Ministério Público, para que verifique a lisura
do procedimento pericial.
Também se afigura interessante requisitar informações do poder público
municipal sobre a existência de alvará para a atividade e sobre a legalidade de
sua localização frente às normas do Plano Diretor do Município, se houver,
além da verificação da regular expedição de "habite-se" para o prédio onde
eventualmente se situa a atividade.
Recebidas tais informações, restando patente a situação de poluição sonora,
deverá o membro do "parquet" ouvir um número expressivo de queixosos na
Promotoria, a fim de que confirmem aquilo que intrinsecamente apuseram no
abaixo-assinado. Tal providência tem-se revelado deveras útil. Muitas pessoas,
fazendo pouco caso de um ato de cidadania como o é a firmatura de um
abaixo-assinado, apõem suas firmas para ajudar vizinhos, amigos, agindo de
forma impensada. Quando chamadas na Promotoria, afirmam que, na realidade, não
se sentem perturbadas pela atividade objeto da reclamação coletiva.
Essa providência também nos parece recomendável para que se faça uma triagem
prévia de depoimentos que, posteriormente, possam vir a ser utilizados em
juízo, evitando surpresas desagradáveis aos autores da ação.
Concluída a instrução do expediente administrativo, constatada a situação de
poluição sonora, deverá o Promotor de Justiça tentar celebrar compromisso de
ajustamento de conduta. Esse precioso instrumento de composição prévia de
litígios assegura à sociedade um título executivo extrajudicial.
Inexitosa a proposta conciliatória, impõe-se o ajuizamento de ação civil
pública com o objetivo de condenar o degradador/poluidor à: a) obrigação de não
fazer ou não permitir que se façam emissões sonoras excessivas ou que, de
qualquer forma, superem os níveis aceitáveis de acordo com lei ou com
Resolução; b) obrigação de fazer consistente em cessação da atividade
responsável pela emissão excessiva de ruídos e prejudicial à saúde e ao sossego
coletivo ou difuso ou na reforma ou instalação de equipamentos acústicos
capazes de conter vibrações sonoras ou ruídos excessivos, assim definidos em
lei ou Resolução, e c) pagamento de indenização em decorrência dos danos
efetivamente causados ao meio ambiente e a terceiros afetados pela atividade
poluidora, destinada ao Fundo de que trata a Lei Federal nº 7.347/85 (conta
corrente nº 170500-8, Banco 001, Ag. 3602-1, Código de identificação
200107.20905.008-0, modelo de depósito 0.07.009-8). Tão logo venha a ser
implantado o Fundo Estadual do Meio Ambiente, recomenda-se
que o depósito venha a ser feito na conta vinculada a esse fundo.
8. CONCLUSÃO:
A poluição sonora é um dos problemas que mais afeta a qualidade de vida das
pessoas nas cidades.
O enfrentamento do tema é um dos desafios impostos ao Ministério Público
enquanto incumbido constitucionalmente de defender os direitos/interesses
indisponíveis da coletividade.
Espero, de fato, ter contribuído, com o presente trabalho, o qual só foi
possível graças ao apoio de pesquisa das assessoras Ítala D´Arc Vargas Otília,
Patrícia Dornelles Vargas e Lisiane Santos Francelino, todas da Coordenadoria
das Promotorias de Defesa Comunitária - Área do Meio Ambiente e Patrimônio
Cultural, para o aprimoramento institucional.